domingo, setembro 17, 2006

Picadeiro

Dirigia o seu carro pelas ruas da já enegrecida Belém. O caminho, bem marcado na cabeça, não seria dificuldade: Almirante Barroso, larga e iluminada, a ciclovia no centro, José Malcher, por dentro do túnel formado pelas copas das mangueiras, Teatro da Paz, Assis de Vasconcelos, etc. Fácil.
O sinal vermelho o deteve e ele ainda nos seus pensamentos. O caminho, o que encontraria. O apartamento, o seu cão abanando o rabo, pensando em comida. Alimentar o cachorro, se alimentar, banho, cama. Coisa boa...
No sinal vermelho, meninos formando uma torre humana: um sobre as costas do outro, fazendo malabarismos com três pedaços de pau enfeitados com plástico. Abortado de seus pensamentos, presencia à força a cena. Sob qual força? Sente como se devesse ser platéia. "Se não pagarei com centavos, pagarei com atenção." Por quanto tempo será que aqueles meninos ensaiaram aquilo? Devem ter faltado a escola... Eles vão à escola?
A apresentação termina, contada no relógio regressivo do semáforo para pedestres. A mãozinha calejada e suja do menino, o que ficara por baixo na torre, bate na janela de seu carro. Por um instante o homem observa os outros carros... Tão protegidos quanto ele na segurança das películas importadas, não abrem as janelas. Carro após carro, cada menino tem o seu esforço ensaiado desperdiçado. No ônibus ao lado, alguns passageiros riem e imitam o movimento de malabarismo, outros dormem, outros ignoram.
"Ajudo?", pensa ele. "Podem realmente precisar... Podem estar sendo explorados sei lá por quem, e se eu der o dinheiro, vou estar estimulando. E se não der?" Ele podia inclusive imaginar as seções de ensaio... Em algum quintal de terra batida, eles insistentemente subindo um na costa do outro. Buscando o equilíbrio perfeito. Talvez assistidos por uma irmã menor de calcinha rosa e boneca descabelada (e sem uma perna, arracanda por um dos meninos) nas mãos, com um dos polegares na boca.
Eles se equilibrando, artistas, voadores, se esforçando para não derrubar as roupas do varal. Eles sonham com a quantidade de dinheiro que vão trazer para casa, o quanto surpreenderiam milhões com esse espetáculo! E dentre esses milhões, alguém que veria a enorme habilidade dos trapezistas, e os levariam para um circo de verdade! "Os irmãos voadores, para vocês!" Pessoas de todos os lugares viriam para ver! A irmãzinha, com uma boneca penteada e com as duas pernas, assistiria da primeira fila, com pipoca e algodão-doce, ao lado da mãe, que já não ralha por causa das roupas no varal. E os meninos riem, pois divertem e colorem o mundo! E fazem isso por alguns centavos. "Ajudo?"
O sinal abriu, e a mãozinha do grande trapezista ficou para trás.
Amirante Barroso, José Malcher... Já não é tão fácil assim.

6 Comentários:

Blogger Policarpe di Emili falou...

fico envergonhado por às vezes me endurecer em relação a certas coisas...

18/9/06 1:28 AM  
Anonymous Anônimo falou...

Ô.

...

Ah.

18/9/06 11:25 AM  
Blogger Aline Bottcher falou...

poxa....


.....

18/9/06 12:08 PM  
Blogger Tamia falou...

e tentativa nº dois... a primeira estava tão bem... já nem me lembro do que escrevi. Bom, vamos lá outra vez!

Eu endureci. Endureci depios de ver que alguns mendigos não o são, que alguns apenas usam roupas velhas, com sinais de sujidade, que são sujos por opção, porque lá nas barracas onde eles vivem têm muito mais que eu tenho nom eu quarto. Tudo o aparelho topo de gama eles têm. Sabem pedir, mas se lhe perguntamos se vão à escola, dizem logo que não, mas recebem dinheiro que todos nós pagamos para irem à escola. Se lhes recusamos dinheiro, aí somos más, como eles nos dizem, não temos coração, mas se lhe queremos dar comida comida, daquela que não é porcaria, daquela que lhes faz bem, mata a fome, essa eles não a aceitam! Quando pedem, pedem dinheiro. Só.
Endureci porque vi que há muitos que pdeme porque estão habituados a pedir, não precisam.
Endureci porque outros há que são explorados, que têm de levar dinheiro, esse é prefeível denunciar.
Endureci, mas nunca fiz tanto voluntariado com agora faço. Endureci mas partilho, dou tempo, dou atenção, ensino, educo porque é isso mesmo que lhes falta, é isso que eles não têm em casa.
Dinheiro muito raramente dou. Comida, dou!
Atenção, muita!
Tempo meu, nem sei quanto!
Há quem rejeite a minha ajuda, apenas querem dinheiro. Dinheiro também não tenho. Não tenho trabalho. Endureci porque não lhes dou aquilo que talvez eles menos precisem.

18/9/06 10:22 PM  
Anonymous Anônimo falou...

Ah, Tamia, mas os nossos aqui não têm nada MESMO, nada nada. O governo aqui ajuda mais quem tem família e uma casa tosca.

Os moradores de rua penam mesmo, por muitas vezes não terem nem documentos. Como se cadastrar pra receber ajuda?

Complicado isso tudo. Mas você é quem está certa, você trabalha e faz algo por eles.

19/9/06 10:45 AM  
Blogger Tamia falou...

Não é questão de estar certa ou errada... Faço o que entendo que devo fazer para ajudar, mas às vezes fico com o sentimento que não faço tudo.
É mesmo ingrata a vida!

20/9/06 12:33 PM  

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